O Grande Vizinho/The Big Neighbor

About This Project

Zona Mineral

Pedro David

Em 1951, Carlos Drummond de Andrade, publica o livro Claro Enigma. Em um de seus poemas mais reconhecidos, A Máquina do Mundo, descreve, em forma de delírio de um caminhante vespertino, a aparição de uma enorme instituição, quase viva, que parece querer mostrar-se capaz de trazer à humanidade toda

a resolução sobre seus anseios, recursos, e riquezas – materiais. Ao alter ego caminhante, que não por acaso descreve a estrada como “pedregosa”, paira a ameaça, ou apenas uma sugestão para que aceite o mundo como vem sendo construído. Tudo é metáfora. Linguagem sofisticada para falar da vida.

As imagens que Rodrigo Zeferino apresenta, em sua nova série de fotografias, nos colocam de frente para a Zona, centro do limitado universo em que adentramos para tentar entender as motivações do artista que converge sua atenção para onde seus vizinhos parecem não enxergar nada além de seu sustento. O grande caldeirão de sonhos minerais que alimentam seu mundo quadrilátero.

Uma gigantesca máquina, iluminada, digere em moto perpétuo todo o minério que vem carregado por aquele trem-monstro, de cinco locomotivas – o trem maior do mundo, tomem nota*. Sua luz, seus sons, e vapores podem ser sentidos por toda a parte. Qual será o limite entre a máquina e seu mundo?

O vizinho Rodrigo, natural da cidade de Ipatinga, que circunda o enérgico colosso iluminado, retoma a técnica da fotografia noturna para interpretar, inicialmente, a complexa relação entre vizinhos. Os pequenos e o grande,
que sustenta e comanda toda a comunidade que surge a partir de seu próprio advento. E o acompanha à maneira que é acompanhado por suas atividades.

Como o Stalker, personagem central da novela dos irmãos Strugatsky, magistralmente adaptada para o cinema em 1974 pelo diretor russo Andrei Tarkovsky, o artista circunda a Zona, uma área de exclusão, que teria sido o ponto de contato de um meteorito, ou de “seres do abismo cósmico”. Ao executar tarefas específicas, interpreta o entorno, tenta entender como seus vizinhos relacionam-se com a lendária máquina. Segue rigorosamente sua

investigação ao explorar minuciosamente as possibilidades de registro desta relação. Cumpre os requisitos próprios de seu processo sem profanar a tangente da Zona, regra sine qua non para a criação da série O Grande Vizinho.

Mas como seu destino parece ser gauche, não poderia ater-se para sempre em sua própria regra. Ao contrário do personagem de Drummond, que resiste à tentação, e prefere não enfrentar a treva espessa que emana de seu delírio*, Rodrigo aceita o magnetismo da máquina, não sem receio de reimprimir um clichê, ou passar a serviçal.

Depois de também relutar em responder a tal apelo assim maravilhoso*, abandona a órbita inicial. Conscientemente deixa-se seduzir pela força centrípeta que emana da Zona e penetra o mundo paralelo da máquina.
Lá de dentro não perde a esperança mais ínfima – esse anelo de ver desvanecida a treva espessa que entre os raios do sol inda se filtra*. E na presença de uma indelével e infindável pulsação, pode envolver-se em sua luz, sua fumaça, seu produto, e adentrar “o quarto”, que segundo o Stalker, atende aos anseios de quem o alcança.

Mas a Zona só realiza os desejos mais profundos e inconscientes. E o mundo é regido pelas leis do ferro fundido.

Podemos imaginar qual a quantidade necessária de matéria mineral para que este gigante se mantenha acordado noite e dia? Qual seria o papel destes pequenos habitantes periféricos nesta atividade de tantas toneladas por hora? Perguntas aparentemente simples que lançadas à luz que emana dos registros desta existência, parecem um convite para o espectador ativo refletir sobre nossa sina ancestral de provedora de matéria prima para o mundo real. E sobre os sucessivos golpes por que passamos aqui na porção sul do planeta.

*com as palavras do próprio poeta, insubstituíveis.

 

Mineral Zone

Pedro David

In 1951, Carlos Drummond de Andrade published the book Claro Enigma. In one of his best known poems, A Máquina do Mundo, he describes the emergence of a huge, almost sentient institution through the ravings of an evening wanderer. Said institution has shown itself capable of presenting humankind with an answer to its every longing, resources, riches – of a material nature. The wanderer’s alter ego describes the road as “rocky” and it is no wonder, as he sees the looming threat, or merely the suggestion that one should accept the world as it is being built. Everything is a metaphor. Sophisticated words to talk about life.

The images Rodrigo Zeferino introduces in his new series of photographs place us in front of the Zone, the center of the restricted universe we’ve entered while trying to understand the artist’s motivations as his focus is drawn to that which his neighbors see as nothing but a way to make their living.

The large melting pot of mineral dreams that feed his quadrilateral world.

A gigantic, luminous machine in perpetual motion digests all the ore that is brought on “a monster, five-engine train – the world’s largest train, take note”*. Its lights, sounds, steams can be felt all around. What is the limit between the machine and the world?

Rodrigo, the neighbor, born in the town of Ipatinga, which surrounds the bright colossus, takes up night photography techniques to, at first, interpret this complex relationship between neighbors. The small and the large that provide for and steer a community that emerged from its arrival. And accompanies it, just as it is accompanied over the course of its activities.

Just like Stalker, the main character of the novel written by the Strugatsky brothers, masterfully adapted into a film by Russian director Andrei Tarkovisky, the artists stalks the Zone, an exclusion area that was supposedly the point of contact with a meteorite, or the “inhabitants of the cosmic abyss”. Upon carrying out specific chores, he interprets the surrounding area and tries to understand how his neighbors interact with the legendary machine. He carries out his

investigation dutifully as he thoroughly examines the options for recording this relationship. He meets the requirements of his own process without infringing the Zone’s tangent, the sine qua non rule guiding the creation of The Big Neighbor series.

But, as he seems fated to be gauche, he could not strictly adhere to his own rule. Unlike Drummond’s character, who resists temptations and prefers to not face the thick darkness exuding from his rave*, Rodrigo embraces the machine’s magnetism while preventing the fear to reprint a cliché or to begin acting as its servant.

After also hesitating to answer to such a wonderful call*, he abandons the
initial orbit. He knowingly allows himself to be seduced by the centripetal force emanating from the Zone and enters the machine’s parallel world. Once there, even the slightest hope is not lost – this longing to see the thick darkness faded as it still sieves through the sunbeams.* In the presence of an indelible, endless pulse, he can be shrouded in its light, its smoke, its product, and step into “the room” that, according to Stalker, grants the wishes of those who reach it.

But the Zone will only grant the deepest, most unconscious desires. And, the world is ruled by the laws of cast iron.

Could we imagine the amount of mineral matter this giant requires to remain awake night and day? What is the role of these peripheral inhabitants in this activity of so many tons per hour? Seemingly simple questions that, when drawn into the light deriving from the records of this existence, seem like an invitation to an active spectator reflect on how we’ve been fated to be the feedstock providers for the real world. And consider the continuous blows we’ve endured here, in the sourthen corners of the planet.

* in the irreplaceable words of the poet himself, here translated into English.

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