*Eder Chiodetto

 

“Uma rua começa em Itabira, que vai dar em qualquer ponto da Terra”. Este verso do poema América, de Carlos Drummond de Andrade, expressa o sentimento do poeta ao ver o pico do Cauê – que se avistava da casa de sua família na pequena cidade mineira -, ser “pulverizado em bilhões de lascas” para alimentar a sanha capitalista de siderúrgicas na Europa e nos Estados Unidos.

 

Desde o período colonial, a história do Brasil se estrutura em torno da extração. Pau-brasil, açúcar, borracha, ouro, café: cada ciclo de riqueza natural traduziu-se em saque. Os recursos foram retirados em larga escala para enriquecer impérios distantes, enquanto por aqui ficamos com o déficit das desigualdades sociais e destruições ambientais.

Atualmente a exploração dos minérios de ferro e do ouro em nossas terras raras, mantém o país sob uma lógica de dependência que remete diretamente ao estatuto de colônia. Gigantescos complexos de mineração destroem paisagens, moldam topografias reduzindo montanhas a pó e transformam rios em rejeito. A maior parte da riqueza gerada segue para fora. Ao Brasil, restam crateras, danos ambientais irreversíveis e populações vulneráveis.

 

Mineiro, o fotógrafo Rodrigo Zeferino está habituado a ver o vai e vem de trens que transportam essa paisagem brasileira pulverizada. Neste projeto, realizado nos últimos cinco anos, ele realizou uma detida pesquisa contemplada com o Prêmio Marc Ferraz de Fotografia, da Funarte, percorrendo localidades espalhadas pelos mais de 1700 quilômetros de malha ferroviária por onde escoa o minério em Minas Gerais e no Pará.

 

Zeferino entra nesse tema sensível por um viés humanista que o levou ao encontro e ao diálogo com pessoas que vivem às margens da ferrovia, no intuito de entender e registrar os efeitos psicológicos, sociais e ambientais que os impactam. Em diversas localidades a linha ferroviária cortou cidades ao meio. Seguiu-se, então, a construção de muros entre os trilhos do trem e os vilarejos, restringindo a circulação e gerando ambientes de interdição inóspitos, insalubres e perigosos.

 

Em “Veia Aberta”, assim como em “Terra Cortada” e “O Grande Vizinho”, projetos de igual envergadura realizados anteriormente, Zeferino parte da observação crítica a esses projetos institucionalizados que visam converter territórios naturais em commodities, para criar um ensaio fotográfico contundente que amalgama estruturas narrativas da fotografia documental com a liberdade de incorporar estratégias da fotografia de caráter experimental.

 

Parte significativa deste ensaio resulta em imagens panorâmicas obtidas por meio da junção de fotografias. Este formato, ao mesmo tempo em que emula o movimento dos vagões que recortam a paisagem horizontalmente, à revelia das ondulações naturais do território, também cita o achatamento da paisagem provocado pela subtração das montanhas.

Flagradas nessas composições horizontais, as pessoas que vivem à margem do extrativismo que desliza diante delas em alta velocidade, parecem em suspensão, atônitas, alheias ao próprio ambiente. Dois universos distintos que embora compartilhem o mesmo quadro, parecem não pertencer ao mesmo tempo-espaço. Entre o flagrante e a encenação, Zeferino cria um espaço narrativo lacunar de grande expressividade, firmando-se como um autor de rara desenvoltura no manejo da linguagem fotográfica entre cronistas visuais contemporâneos.

 

As imagens dos trens carregados de minérios que atravessam o Brasil rumo ao litoral são emblemáticas: cada vagão transporta não apenas ferro, mas também fragmentos de paisagens, memórias culturais e identidades regionais. O que se exporta não é apenas matéria-prima – é também o futuro do território, hipotecado em nome de um progresso que nunca chega de fato à maioria da população. Zeferino enfatiza esse estado das coisas ao justapor acúmulos de rejeitos e pepitas de minérios nas suas obras. Minérios esses que se perderam ao longo da ferrovia ao transbordarem dos vagões, que em geral, carregam mais volume do que conseguem suportar. 

 

* Eder Chiodetto é curador e crítico de fotografia.